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Caso Lance Armstrong ou “A verdade vos libertará”

Na atual tempestade vivida pelo ex-ciclista a citação bíblica da ex-esposa Kristin Richard foi marcante: A verdade vos libertará (João 8:32)
Quinta-feira e sexta-feira, 17 e 18 de janeiro de 2013. Entrevista (em duas partes) do ciclista norte-americano Lance Armstrong para a apresentadora Oprah Winfrey no programaOprah’s Next Chapter, em Austin/Texas, transmitida no Brasil pelo Discovery Channell. Assunto: confissão de consumo de substâncias proibidas durante sua carreira de atleta para melhora de desempenho. Alguns trechos da entrevista:

Oprah: Apenas sim ou não como resposta: Alguma vez você tomou substâncias proibidas para melhorar o seu desempenho no ciclismo?
Lance: Sim.
O: Foi uma daquelas substâncias proibidas EPO?
L: Sim.
O: Alguma vez você usou drogas no sangue ou usou de transfusões sanguíneas para melhorar o seu desempenho no ciclismo?
L: Sim.
O: Você já usou outras substâncias proibidas, como cortisona, testosterona ou hormônios de crescimento humano?
L: Sim.
O: Em todas as sete vitórias da Volta da França você tomou substâncias proibidas ou drogas no sangue?
L: Sim.
O: Em sua opinião era humanamente possível ganhar a Volta da França sem doping sete vezes consecutivas?
L: Não, em minha opinião.
O: Então quando você começou a se dopar?
L: Eu acho que no começo da minha carreira eu tomava cortisona e a geração de EPO começou.
O: Por 13 anos você não apenas negou veementemente tudo que acabou de admitir. Por que admitir agora?
L: É a melhor pergunta. É a mais lógica. Não sei se tenho uma boa resposta. Vou começar dizendo que é tarde demais. Eu tenho visto a situação como uma grande mentira que eu repeti várias vezes. Eu superei uma doença, ganhei a Volta da França sete vezes, tinha um casamento feliz, tenho filhos. É uma história perfeita e mítica. E não era verdade.
O: Era difícil manter sua imagem?
L: Era impossível.
O: A Usada (Agência Antidoping dos EUA) divulgou um relatório de 164 páginas em que o presidente Travis Tyger disse que você e a equipe dos correios dos EUA montaram nas palavras dele “o sistema mais inteligente, bem sucedido e profissional da história do esporte”. Foi mesmo?
L: Não. Não. Eu acho que ele disse da história de todos os esportes. Oprah, não foi. Certamente era profissional e inteligente, se quer chamar assim, mas era muito conservador.
O: Como era a cultura? Pode explicar para nós?
F: É difícil entrar neste assunto e não quero falar de ninguém.
O: Todo mundo estava envolvido?
L: Eu não conhecia todo mundo. Eu não treinava com todo mundo. Algumas pessoas dirão: “havia 200 ciclistas na Volta (da França), conheço cinco que não faziam. E eles são os cinco heróis”. E estão certos.
O: Você está processando pessoas que você sabe que estavam dizendo a verdade. O que é isso? (Ela mostrou as fitas das negações que Armstrong repetiu nos últimos anos).
L: É uma grande falha.
O: Em algum momento sentiu que estava trapaceando?
L: Não, que é o mais assustador de tudo.
O: Tudo o que está sendo escrito sobre você têm começado com a palavra “desonra”. Você se sente desonrado?
L: É claro que me sinto desonrado. Mas também me sinto humilhado e envergonhado. É algo horrível.

Armstrong sobre as decisões tomadas pela Livestrong:
L: Esse foi o momento mais humilhante. Pediram-me para renunciar como presidente.

O: Você está enfrentando seus demônios?
L: Absolutamente. É um processo. Estamos no início do processo.
O: Como você se vê agora?
L: Pesado. Isso é uma confusão. Eu estou fazendo terapia. Eu sou do tipo de pessoa que faço isso esporadicamente. Este será um longo processo.
O: Está realmente com remorso ou há uma sensação de “desculpe-me por ter sido pego”?
L: Eu estou apenas começando. Eu tenho remorso? Absolutamente. Eu estou pagando o preço. Eu mereço.
O: Existiam pessoas que sabiam sobre isso que queria que você parasse com isso?
L: Naturalmente.
O: Em seu retorno em 2009, tendo se aposentado em 2005, você esperava ganhar?
L: Sim. Eu pensei que eu ia voltar a um esporte limpo e nivelado. Eu esperava ganhar (o Tour de France 2009). No final, eu fui vencido por dois caras que estavam melhores.
O: Você espera que o seu banimento seja retirado?
L: Egoisticamente, sim. Mas, realisticamente, eu não acho que isso vá acontecer.
O: Você estava tentando pagar a Usada?
L: Não, isso não é verdade. No documento de 1.000 páginas, havia um monte de coisas, tudo estava lá, então por que isso não estaria? Oprah, isso não é verdade.
O: Você se sente um ser humano melhor depois do que aconteceu?
L: Sem dúvida. Isso já aconteceu duas vezes. Quando fui diagnosticado. Eu era mais inteligente, mas depois eu perdi meu caminho. Eu não posso perder meu caminho novamente. Só eu posso controlar isso.

Sobre o filho Luke, de 13 anos:
L: Eu vi meu filho me defendendo e dizendo: “Isto não é verdade. O que você está falando sobre o meu pai não é verdade”. Este foi o momento em que vi que tinha de lhe contar a verdade. Mas ele nunca me perguntou se era verdade ou não… Eu disse: Luke, não me defenda mais. Não me defenda. Se alguém disser alguma coisa diga apenas que eu peço desculpa.

Final da entrevista

O: Você sabe o que eu espero, que a moral da história seja a de que Kristin (Richard, ex-esposa) te ensinou em 2009: “a verdade vos libertará”.
L: Há uma outra moral para esta história. Para mim é sobre essa viagem. Perder-me e ser pego. Fazer as coisas pelo caminho me deixaram assim.

Os telespectadores assistiram a um Lance Armstrong com sinais de nervosismo e de desconforto, mas disposto a responder às perguntas. É provável que não tenha sido sincero em todas as respostas, mas, salvo engano, aparentou arrependimento. Um ser humano que errou e que reconheceu suas falhas em público. É um mérito, independentemente de se ter simpatia por ele ou não. Somente o próprio e pessoas próximas a ele conhecem os verdadeiros motivos que o levaram a conceder a entrevista. No entanto, o conjunto de fatores – familiares (filho Luke e ex-esposa Kristin), pessoais (possibilidade de retirada do banimento e retorno às competições e revisão de conceitos de vida) e empresariais (mitigar os danos à Livestrong) – deve ser levado na avaliação.

Atualmente, o norte-americano talvez esteja realmente enfrentado os seus demônios, como naquele conto mitológico (constante no Livro de Ouro da Mitologia, de Thomas Bulfinch) em que Sibila (mulher com poderes proféticos), acompanhando Eneias às profundezas da terra, mostrou-lhe os vários castigos impostos a almas pecadoras. Havia o gigante Títio, cujo fígado, quando devorado por abutre, crescia novamente, de modo que o castigo não tinha fim; havia o grupo de almas que sustentava enormes rochedos sobre a cabeça que ameaçavam cair, mantendo-os num estado de constante alerta. Estes, explicou Sibila a Eneias, eram os que haviam iludido os amigos, odiado seus irmãos e ultrajado seus pais. Por último, estava lá Sísifo, cuja tarefa consistia em rolar enorme pedra até o alto de um morro, mas quando se encontrava perto do cume, a pedra (impelida por uma força repentina) rolava de novo para a planície. Este talvez seja o momento atual vivido por Lance: explicações mais explicações, sentimento de mea culpa e pagamento pelos erros cometidos.

A vida não para. Depois da tempestade (diz o ditado) vem a bonança. Na realidade, vem o estrago que ela trouxe. Somente depois de certo tempo com ações positivas e verdadeiras é que a calmaria e o sossego chegam. Assim, o ex-ciclista continuará ainda sendo alvo de críticas e ações de terceiros. Como a vida de todo mundo é de altos e baixos faz-se necessário dar tempo para verificar as reais conseqüências da entrevista a ele e à modalidade e, quem sabe, dos verdadeiros motivos que o levou a concedê-la.

Na atual tempestade vivida pelo ex-ciclista a citação bíblica da ex-esposa Kristin Richard foi marcante: A verdade vos libertará (João 8:32). E a viagem de Eneias, mais uma vez, mostra-se, mais uma vez, inspiradora. Sibila advertiu Eneias de que era tempo de deixarem aquelas regiões melancólicas e procurarem a cidade dos eleitos. Atravessaram uma estrada coberta de trevas e chegaram aos Campos Elísios, onde moram os felizes. Os habitantes distraíam-se praticando exercícios de força, dançando e cantando. Ali moravam os que haviam morrido em conseqüência de ferimentos recebidos pela causa de sua pátria e os que haviam prestado serviços à humanidade.

Fazendo um paralelo entre o conto e a citação da bíblia pode-se supor que a entrevista reveladora trouxe um alívio à alma do ex-heptacampeão da Volta da França. A vida segue; o ciclismo é bem, bem, mas bem maior que Lance Armstrong; e “o tempo é o senhor da razão”.

Após a entrevista, foram divulgadas algumas declarações de atletas, tais como:

O ex-ciclista belga Eddy Merckx: Muitas vezes falei com ele, olhos nos olhos, sobre doping e confesso que esta notícia foi muito difícil de ouvir. A minha decepção foi enorme. Tudo isto é mau para o ciclismo. Admitir que não é possível vencer o Tour de França sem doping é um escândalo; é uma afirmação fácil e hipócrita.

Tenista suíço Roger Federer: Fico triste em saber que alguém se dopou e enganou a todos por tanto tempo. Ele machucou o esporte.

Tenista norte-americana Serena Williams: Acredito que muitas pessoas, agora, olham e pensam que se alguém tão grande no esporte trapaceou, todos os outros atletas de outros esportes também estão fazendo isso.

Tenista sérvio Novak Djokovic: Lance Armstrong é uma vergonha para o esporte. Ele merece sofrer.

Fonte": Blog Sport