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Era preciso se dopar para ser um dos primeiros, diz ex-parceiro de Armstrong

O americano Tyler Hamilton, 41, não é santo. Astro do ciclismo mundial nos anos 90 e 2000, foi flagrado em exames antidoping duas vezes e teve de devolver uma medalha de ouro olímpica que ganhou em Atenas-2004.

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Agência antidoping acusa confederação de ciclismo de proteger Armstrong.
Se não se destaca pelo passado ilibado, Hamilton se apresentou nos últimos anos como defensor do esporte limpo. Para alguns virou traidor. Para outros, exemplo.

Herói ou vilão, Hamilton foi amigo, escudeiro e confidente de Lance Armstrong, o ícone que ajudou a construir e a destruir. Ambos correram na equipe norte-americana de ciclismo US Postal entre 1998 e 2002, quando o texano venceu três de seus sete títulos da Volta da França.

Dividiram seringas, hormônios, codinomes e segredos, todos revelados no livro "A Corrida Secreta de Lance Armstrong", que será lançado em português em março.

Participaram, nas palavras da Usada (Agência Americana Antidoping), do "mais sofisticado, profissional e bem-sucedido programa de doping já visto no esporte".

Dois anos atrás, Hamilton pôs-se a falar tudo sobre sua vida de dopado. Envolveu, é claro, Armstrong.

Uma entrevista sua serviu de base para a investigação da agência norte-americana que resultou na cassação dos títulos do ciclista texano de 1998 a 2005 e em seu banimento do esporte.

Hamilton e outros ex-ciclistas da US Postal deram depoimentos no inquérito.

Pivô de revelações que derrubaram Armstrong, Hamilton hoje vive em Boulder, no Estado do Colorado.

Em entrevista por telefone à Folha, disse que o ex-amigo mentiu à apresentadora de TV Oprah Winfrey, quando confessou o uso de doping que havia negado durante anos. Hamilton afirmou também que casos de doping foram acobertados pela União Ciclística Internacional.

Folha - Por que só decidiu escrever um livro muito tempo após ser pego no doping?
Tyler Hamilton - Eu ainda vivia a mentira e me acostumei a pensar que aquilo que fazia era certo. Depois, pude refletir e ver que tudo o que vivi era uma farsa. Foi difícil me abrir no começo e falar com minha família. Dá para imaginar o quanto sofri?

Pensou em algo mais extremo, como reclusão ou até suicídio?
Pensei. Não vou negar que esse pensamento passou pela minha cabeça. Mas, graças a Deus, eram só pensamentos. Família, filhos e amigos ajudaram a me reerguer.

Depois que publicou "A Corrida Secreta" e depôs para a Usada, sofreu ameaças?
Recebi ameaças até recentemente. Principalmente ameaças por e-mail, nunca pessoalmente. São coisas que acontecem com quem se indispõe com pessoas de poder. Não gosto de falar a respeito, mas recorri até ao FBI para ter proteção. Fiquei preocupado com minha família.

*Você mantém algum relacionamento com Armstrong? *
Não tenho o menor tipo de relação com ele. E acho que está muito bem assim.

Ele não testemunhou e preferiu dar entrevista. Por que acha que adota essa tática?
Não sei. Mas, se ele não for à corte, tudo o que disse na entrevista não passa de uma farsa. Para mim, é obrigação ele se voluntariar e ir depor.

Assistiu à entrevista dele com Oprah Winfrey?
Sim. Armstrong não contou tudo o que sabia. Na verdade, só falou de si. Evitou envolver pessoas ou entidades. Há muito mais a ser dito.

Em sua opinião, ele mentiu ou apenas omitiu fatos?
Mentiu em vários momentos na entrevista. Lance fugiu de questões difíceis.

Se Armstrong insistir em não ir à Justiça confessar, qual deveria ser a punição?
Não cabe a mim decidir isso. Mas, se ele for sincero em querer fazer a coisa certa, terá de confessar às agências antidoping tudo o que sabe.

Qual é seu sentimento em relação a ele atualmente?
Estou em ótima fase em minha vida. Não tenho raiva dele. Relaxei. E entendo o que Lance sofreu porque vivenciei tudo isso dois anos atrás.

Armstrong chorou durante a entrevista a Oprah. Para você, foi uma reação genuína?
Acredito que foi verdadeiro. Deve ter sido muito difícil para ele contar para os filhos.

Afirma-se que ele deu a entrevista e confessou para ter sua punição reduzida e poder voltar ao triatlo. Concorda?
Não sei a razão de ele ter ido a público. O importante é que ele confessou. Ele confessou um doping, algo que eu jamais imaginava ser possível. Foi um grande passo.

Você mantém contato com ex-companheiros da US Postal?
Floyd Landis e eu conversamos de vez em quando. Mas eu não falo com outros.

Em depoimento à Usada, você disse que Armstrong foi flagrado dopado na Volta da Suíça, em 2001. Ele negou na entrevista. Era mentira, então?
Mentiu. Ele me contou pessoalmente que havia sido pego. Queria que ele nunca tivesse me falado aquilo, em meu rosto, mas disse. Armstrong foi pego naquele teste antidoping na Suíça.

Em sua denúncia sobre a Volta da Suíça, a UCI estaria envolvida e acobertou o doping?
Qualquer um sabe que a UCI foi corrupta no passado. É uma entidade que ainda não consegue responder as perguntas difíceis. A direção dela tem de mudar. Quanto mais rapidamente a estrutura for mudada, melhor. Precisa de um novo líder. Pat McQuaid [atual presidente] e Hein Verbruggen [o antecessor] não são boas lideranças, para dizer o mínimo.

A UCI acobertou outros casos?
Só posso falar do tempo em que corri. Mas a UCI com certeza escondia resultados positivos de testes antidoping. Vários casos de que tenho ciência foram acobertados.

É possível que um ciclista termine a Volta da França, por exemplo, sem doping?
Disputei a Volta da França de 1997 a 2004, e todos os ciclistas do pelotão principal se dopavam. Serei mais claro: Seria possível sobreviver ao Tour sem doping? Sim, seria, mas com certeza terminaria no fim do pelotão. Para competir realmente e brigar pelo título ou ficar entre os dez primeiros, era preciso se dopar.

Fonte Folha.